Três dias antes do Natal do ano passado, a agente de atendimento Isabela (nome fictício), de 18 anos, estava voltando para casa após um culto na igreja onde frequenta quando foi abordada por um desconhecido em uma moto. A princípio, ela diz ter pensado se tratar de um assalto e chegou a entregar o telefone celular ao homem com capacete.
“Esse foi o único dia que eu estava voltando para casa sozinha. Ele me pegou em uma rua deserta e apontou a arma para mim. Por medo, eu não gritei. Ele pegou o celular e disse que ia me guiar. Me levou a uma rua mais deserta e colocou um capuz em mim para eu não ver o rosto dele”, diz.
O estupro aconteceu na rua mesmo. Com medo do agressor que a ameaçou de morte caso contasse para alguém, Isabela ficou calada e relatou apenas o assalto para a mãe.
A jovem faz parte dos 90% das vítimas de violência sexual que não denunciam o agressor e não procuram ajuda médica, segundo o ginecologista Jefferson Drezett, coordenador do projeto “Bem Me Quer” do hospital Pérola Byington, na região central de São Paulo, referência no atendimento de mulheres e crianças vítimas de violência sexual.
“Existe uma informação consolidada de que a maior parte das pessoas que sofrem violência sexual não vai procurar ajuda policial nem médica. A situação brasileira não é diferente da encontrada na América Latina e Caribe. Apenas 10% a 15% denunciam”, diz ele.
Drezett afirma que os principais motivos para que a denúncia não seja consolidada são o medo de morte e da repetição da violência, sensação de vergonha e humilhação e sentimento de culpa.
Para a psicóloga Branca Paperetti, coordenadora da Casa Eliane de Grammont, que também atende vítimas de violência, estupro e abusos também são subnotificados quando o agressor é um conhecido da vítima, principalmente quando ela tem (ou teve) um envolvimento afetivo ou amoroso com ele.
“Quando acontece na rua, muitas vezes ficam as provas da violência. Mas em casa, ela, muitas vezes, acredita que isso [relação sexual não consentida] faz parte das regras do casamento. Para muitas não é considerado estupro. Muitas vezes, elas descobrem que foram abusadas depois que procuram ajuda por causa de agressões físicas e depois relatam violência sexual. Cerca de 90% das mulheres que nos procuram relatam violência física, a princípio. Mas em 80% desses casos, o abuso sexual também aparece depois da primeira queixa”, diz Branca.
“A gente tem mais noticia do abuso sexual por parceiros, conhecidos, ou ex-compenheiros do que por desconhecidos. Eles não aparecem, não são contabilizados. Isso acaba gerando uma naturalização desse tipo de violência”, afirma Branca.
Gravidez e doenças
Segundo Drezett, o número de denúncia sobe consideravelmente quando a vítima engravida e chega a 70%. “É claro que a maioria das mulheres não denuncia. Os números mostram que é um iceberg, mas quando existe um problema como a gravidez, elas têm iniciativa de procurar a polícia, um serviço de saúde e acabam compartilhando apenas com familiares e amigos muito próximos.
Foi o que aconteceu com a agente Isabela. “Percebi algo estranho no meu corpo, fui ao médico, pensando que era cisto, fiz exames e descobri a gravidez. Tive que contar para minha mãe. Nós fomos à delegacia e fizemos um boletim de ocorrência e fomos encaminhadas ao hospital Pérola Byington”, conta. Lá, ela recebeu a autorização para fazer o aborto legal, permitido no Brasil, em casos de estupro.
“Me sinto um pouco mais aliviada [em ter feito o aborto], mas o trauma vai continuar. Saber que não vou fazer a criança sofrer com a rejeição me alivia um pouco mais”, diz.
O coordenador do projeto “Bem Me Quer” do Pérola Byington afirma que 5% a 6% das mulheres em idade fértil que foram estupradas e não usam métodos contraceptivos engravidam. Apesar de baixo o risco de gravidez, as doenças sexualmente transmissíveis atingem 32% das mulheres e o dano psicológico é comum para quase 100% das vítimas.
“É avassalador, virulento. É incomum que não tenham impacto emocional. A maioria das mulheres desenvolve a Síndrome do Transtorno Pós-Traumático. O trauma pode durar anos e pode até ser permanente, principalmente se ela não receber a atenção adequada. É muito comum ela pensar recorrentemente em suicídio. Não quer dizer que ela vai cometer, mas ela pensa muito”.
Ele diz que além do campo psicológico, que pode incluir também ansiedade, depressão, transtornos do sono e de alimentação, abuso de drogas e álcool, a mulher também vai perceber impacto muito grande na sexualidade. “Muitas param de ter relações sexuais. Elas sentem dor, perdem o prazer e têm dificuldade ou perdem totalmente o desejo sexual”, diz o ginecologista.
Crianças e adolescentes
Drezett afirma que, no caso de crianças, os danos vão ainda afetar as relações pessoais por toda a vida. “Geralmente, as crianças são abusadas por pais, padastros, pessoas próximas ou que tenham acesso a elas e por isso há uma quebra de confiança”.
Branca alerta que crianças abusadas geralmente serão adultos que terão dificuldade para “viver a própria sexualidade, se entregar e confiar”.
“Geralmente, quem comete o abuso é uma pessoa que deveria proteger a criança, que ainda não tem códigos morais e sociais para entender que isso está errado. No começo, pode até gostar da atenção que está recendo, mas quando percebe o abuso se sente culpada. Isso é desastroso na formação da identidade de uma criança”.
Os pequenos ainda são as maiores vítimas de estupros e abusos no País. Segundo Drezett, 50% dos pacientes do projeto Bem Me Quer, que atendeu cerca de 30 mil vítimas, desde 1994 (quando foi criado) são crianças de até 12 anos, 25% são adolescentes e 25% são adultos.
Registros
Apesar de necessário para se ter um levantamento aproximado do número de casos no país e possível investigação policial, fazer boletim de ocorrência nem sempre é uma experiência tranquila para as vítimas. “Mesmo com a gravidez, muitas mulheres não querem realizar o boletim de ocorrência. O motivo geralmente é que elas estão em risco e são ameaçadas pelo agressor”, diz Drezett.
Além disso, diz Branca, existe o constrangimento de contar a história para desconhecidos, como delegados e investigadores, que nem sempre têm preparo para atender vítimas de violência sexual.
Mas mesmo quando a vítima resolve passar por cima do constrangimento e se propõe a denunciar casos de abusos, a tarefa não é fácil. A analista de planejamento financeiro Jéssica Teixeira, 22 anos, diz ter sofrido abuso sexual em um ônibus que fazia o trajeto entre as cidades de Diadema e São Bernardo do Campo (ABC). Segundo ela, um homem aproveitou a lotação do ônibus para se esfregar nela. “Ele tirou o pênis para fora e colocou na minha mão. Eu gritei”, diz ela. Ainda de acordo com a analista, o abusador foi tirado de dentro do coletivo por um passageiro. Os três saíram do terminal Diadema e encontraram uma viatura da Guarda Civil Municipal (GCM), que fez o registro da ocorrência.
“Fiquei muito nervosa, não fui a uma delegacia e os policiais também não me orientaram a ir. Apenas forneci meus dados, que eles anotaram e fui embora. Estava muito nervosa e não pensei em nada. Achei que só falar com eles resolveria. O homem [abusador] estava lá, tinha testemunha”. Ela diz não saber se foi registrado um boletim de ocorrência.
Questionada pela reportagem sobre o assunto, a GCM informou em nota que “não houve ocorrência registrada na GCM de Diadema”. A jovem diz que já solicitou as imagens das câmeras do ônibus para registrar um boletim de ocorrência na Polícia Civil e tentar identificar o agressor.
Fonte: iG